É inevitável que eu lhes fale uma palavra sobre o caso Battisti. Quando a decisão foi tomada (…), eu estava em Moscou e agradeci a Deus por estar em lugar tão remoto, incerto e não-sabido para muitos e não ter de atender à Jovem Pan, e não ter de atender ao Estadão, à revista VEJA, que queriam ouvir alguma coisa. A decisão me chocou de tal maneira que achei que correria, se falasse naquele momento, o risco de dizer coisas de que poderia me arrepender (….). Vejam: a minha visão neste caso é totalmente isenta. Eu não tenho nenhuma participação pessoal — nem a origem italiana que pelo menos 30% dos brasileiros têm.
Mas o que eu achei uma lástima e me faz pensar que esse caso não honrará, no futuro, a história do Supremo Tribunal Federal é o fato de que o erro que se cometeu por maioria significou uma renúncia a um poder constitucional do Supremo. Errar por absorção de poder, como fez o juiz John Marshall, nos primórdios da Corte Suprema americana, vá lá. Mas errar para renúncia ao poder, para a transferência de poder, me parece deplorável. Me aborrece, por exemplo, saber que o raciocínio que, afinal, prevaleceu retrata uma não-leitura de tudo o que o Supremo já disse sobre o assunto no passado; uma não-leitura, sobretudo, do que disse Victor Nunes Leal sobre o tema e vai ser publicado agora num livro da Fundação Victor Nunes Leal a respeito da matéria.
(…) Houve quem se empolgasse com pareceres produzidos ad hoc para o caso concreto, sob encomenda da defesa. Eu achei que o aspecto mais penoso dessa novela triste que foi o caso Battisti é a renúncia ao Poder. Diria que, doravante, para ser coerente com o que decidiu há duas semanas, o Supremo, quando recebesse processos de extradição, não deveria pô-los em pauta, e sim mandá-los ao Palácio do Planalto para que decida. Não se renuncia a uma competência constitucional dessa maneira por razões como aquelas que possivelmente motivaram os sentimentos respeitáveis, humanitários talvez, daqueles que formaram a maioria (…).
A concessão da extradição foi majoritária, mais majoritária ainda foi a anulação do ato do ministro da Justiça, que concedeu o estatuto de refugiado ao cavalheiro em questão atropelando um processo de extradição que se encontrava na mesa do Supremo. Existem hoje no mundo certos países, não muitos felizmente, mas certos países, que fizeram da vingança armada e da vingança sangrenta a sua bandeira e que, de vingança em vingança, eliminam seus inimigos no cotidiano. A Itália certamente não é um deles. É um país em que o sentido de generosidade e de perdão é mais agudo do que o nosso. (…)
Na imensa confusão que foi criada no espírito coletivo pela defesa [discutiu-se] o que nunca se discutiu antes em extradição: “Fez não fez, era ele não era ele, estava lá não estava lá”, tudo isso de uma impertinência colossal. No contexto dos “Anos de Chumbo” em que Cesare Battisti, em nome dos Operários [Proletários] Armados pelo Comunismo fez aquilo que fez, um pequeno grupo, um outro grupo, mais jovem, Estudantes Armados pelo Comunismo, esse grupo seqüestrou o primeiro-ministro Aldo Moro e o manteve em cárcere privado, sob maus-tratos durante semanas, até um dia assassiná-lo e desová-lo no porta-malas de um carro, no centro de Roma.
Aldo Moro não era apenas um dos grandes estadistas da Europa da segunda metade do século 20. Era também um homem de um generosidade e de uma bondade pessoal que a todos cativava. Pois bem: os seqüestradores e assassinos de Aldo Moro foram todos identificados de pronto, processados, apenados pela Justiça. Vão lá saber onde estão eles — não ontem, mas há anos já, todos na rua, exercendo suas profissões, trabalhando, se divertindo, vivendo normalmente. Porque a anistia, o perdão não demoraram.
Mas eu insisto: quem tem de fazer isso com Cesare Battisti são os italianos, não nós. Não é o Lula, não é o Supremo, não é o senador Suplicy, não é o professor Dallari, não é o ministro Genro. Me pareceu uma página sombria a história da Praça dos Três Poderes. Porque o festival de erronias dançou pela praça um minueto admirável. (…)